29.4.10

Dona Filomena

Um dos personagens da minha infância foi a Dona Filomena. Resolvi escrever sobre ela porque sonhei com ela essa noite. Dona Filomena foi minha vizinha de muro até meus 26 anos. Quando saí daquela casa ela já beirava os 100.


Lembro-me de um dia, eu estava nas primeiras séries do ensino fundamental, acho que na segunda ou terceira série, e tava vendendo uma rifa da escola. A cada número vendido ganhávamos nem lembro o que. Aí fui chamar a Dona Filomena no muro pra vender pra ela, que comprou vários números e também as filhas dela compraram, eram várias filhas, 4. Na hora de colocar o nome dela no número vendido, ela pediu que eu escrevesse, pois ela não sabia escrever. Incrível como isso mexeu comigo na época. Acho que a primeira maior alegria da minha vida, que eu me lembre, foi quando eu me dei conta de que sabia escrever, aí descobri que a minha vizinha tão querida, quase uma avó, não sabia escrever o nome. Essa imagem até hoje é muito nítida na minha cabeça. Lembro dos dedos dela, morenos, pele escura e muito enrugada, com uma aliança grossa no dedo, me passando o papel da rifa pra eu escrever seu nome.


Outro dia que é tão vivo na minha lembrança como se fosse hoje foi quando achei que minha mãe tinha me abandonado. Minha mãe vivia falando que ia sumir de casa, irritada com a bagunça que eu, meu irmão e meu primo fazíamos. Falava o tempo todo que ia fugir de casa. Ela sempre fazia a gente dormir depois do almoço, provavelmente pra dar um sossego pra ela, mas eis que, numa tarde acordei e não a vi em casa. Meu pai estava trabalhando, meu irmão devia estar na escola. Era uma tarde de inverno, tinha uma neblina que não dava pra ver nada na rua, aquele frio. Saí correndo, pulei o portão e entrei na casa da Dona Filomena, chorando, dizendo que a minha mãe havia me deixado sozinha. Ela calmamente me levou até a sala, ligou a televisão na sessão da tarde, me deu chá e bolachas e me acalmou até a minha mãe chegar. Ela tinha ido só até o mercado, mas pareceu uma eternidade. Minhas duas avós moravam longe de mim, acho que no fundo eu via a Dona Filomena como a minha avó por adoção.


Dona Filomena morreu faz alguns anos, logo que saímos da casa vizinha dela. Mas ainda tenho a imagem dela mais nítida do que se fosse uma foto. Morena, cabelos ralos, um brinco de ouro, da mesma cor da aliança, avental bordado, sempre de avental. Saudade.

Nenhum comentário: