15.4.08

Cheiros da infância

Hoje fui ao cinema. Mas não um cinema comum, e sim a uma sessão que rolou no SESI daqui. Logo que entrei no teatro (onde rola a projeção), senti um cheiro que não sei exatamente do que é, mas lembro exatamente onde o senti pela última vez: Na parte da estante da minha tia, em que eram guardados os jogos de mesa, como dominó, ludo, damas, e o que eu mais gostava, o É proibido colar. Sentávamos meu primo, meu irmão e eu na frente da portinha da estante, abríamos pra pegar um dos jogos e lá vinha aquele cheiro. Cheiro de férias de janeiro. Cheiro de feriado de chuva.

Enquanto esperava o início do filme, com um copo cheio de café, me coloquei a relembrar os cheiros que me causam mais saudade. Outro é o cheiro da cozinha da vó Angelina. Mas esse eu sei o que era, era a gordura de porco que ela usava na comida super saudável que preparava pra gente. Perdoem, naquela época não se falava em colesterol, gordura trans, ômega 3 e essas coisas modernas. Eram os anos 80, pô. Aquele cheiro estava presente o tempo todo naquela cozinha, onde passei alguns dos dias mais alegres da minha infância. Quando a vó fazia a gente comer toda a comida, senão não comeria a sobremesa. Quando íamos fazer a "boquinha" antes de dormir, depois de assistir um filme à noite. Quando eu aprendia a pintar as unhas com a minha tia. Quando ficávamos olhando meu tio, ainda solteiro e moço, jogar água gelada em quem estivesse tomando banho pela janela do lado. Quando o vô achava ruim por causa da gritaria. Quando a vó brigava porque montávamos uma mesa de ping pong na cozinha, com a mesa de jantar. Lembro do último dia que senti esse cheiro, um dia triste. Após o enterro da vó, o vô chorando no canto da cozinha, com o lenço da vó na mão. Ainda o vi mais uma vez, e lá se foi o vovô também, e aí parecia a infância indo embora de vez.

O cheiro do perfume da vó Alayde. Esse ela já tinha deixado de usar, mas ainda lembro. Nas últimas vezes que a vi, já não usava mais. Essa vó era meio brava... igual à minha mãe. Minha mãe não gosta de perfumes.

Tem cheiros que me lembram coisas ruins também. O remédio que eu usei quando, aos 9 anos tive uma complicação de uma catapora. Ele era aplicado na pele, pra cicatrizar, e tinha um cheiro que só em alguns hospitais voltei a sentir, era um tipo de mercúrio, vermelho, em spray. Cheiro da gaveta do criado mudo que eu tinha no meu quarto quando, aos 10 anos, fiquei internada por causa de uma infecção nos rins, lá eu guardava meus gibis que li durante a semana de internação. Só de passar na frente de consultórios odontológicos sinto o cheiro do dentista. Esse realmente me apavora.

Os cheiros da infância se encerram com o que eu marco o do início da adolescência e suas descobertas: o cheiro de halls verde, aquele de menta. Era o cheiro da domingueira que eu ia, quando aos 14 anos comecei a sair com as amigas pra ir em algum lugar além do shopping e da biblioteca. Logo que se entrava na Sunshine (danceteria já decadente na época, e que adorávamos), se sentia o cheiro do hálito de todo mundo, era o halls. Ali iniciava outra fase da vida, outras diversões, bem menos simples do que as de antes. Aliás, a vida nunca mais foi muito simples.

Mas continuo com a mesma mania olfativa. Cada pessoa tem um cheiro, independente do perfume, se usa ou não. Todo mundo tem um cheiro, todo lugar tem um cheiro. Não que eu saia por aí cheirando os outros, mas esses cheiros chegam até mim, quase que junto com a imagem, com a voz das pessoas. Quase sempre é involuntário. Outras não.

Uma segunda-feira triste e chuvosa só podia terminar com um texto melancólico mesmo...

4 comentários:

Anônimo disse...

Lindo texto. Tocante... Me fez lembrar de coisas que eu já havia enterrado há muito.
Uma boa tarde, Bel.

Edu Guimarães disse...

Não seixa de ser melancólico, ms tem uma beleza nisso também.Talvez a beleza que saber que viveu isso, que fez parte, queessas coisas e pessoas estiveram lá.

Bonito Bel...

Mike disse...

E desde quando melancolia é sinônimo de tristeza? Melancolia é bom, ainda mais lembrar de cheiros tão marcantes, tão importantes...

Grande abraço

Marcio Brigo disse...

Me lembro que uma vez vc disse que não sabia escrever. Você mentiu.

Adorei o texto.

Um beijo e um chero.